Pode a ficção dar sentido ao "crepúsculo da piedade"? Nos relatos selvagens de "A invasão", Ricardo Piglia retrata o que há de cruel no âmago das relações humanas: a fúria de quem não tolera o gozo alheio ou já não aguenta reprimir o próprio desejo ("Tarde de amor"); o desamparo da velhice e sua perpétua prisão ao passado ("O muro"); a metrópole que seduz e destroça e não pára de engendrar vítimas e carrascos ("Uma luz que sumia"); as renúncias e covardias que culminam numa perda irreparável ("Suave é a noite"). A turbulenta história argentina aparece ficcionalizada em "Mata Hari 55" e "As atas do julgamento", narrativas que giram em torno de traidores, alienados e idealistas que não resistem à prova da realidade. E no conto-título, assistimos ao surgimento de Renzi (futuro Emilio Renzi, alter ego de Piglia) como um estudante encarcerado que não consegue dormir (de calor, medo, angústia e choque) ao dar-se conta de que algo espantoso acontece no fundo da cela. Algo que o perturba e invade para além dos ouvidos cobertos e dos olhos fechados.
Se a primeira epígrafe do primeiro livro de Piglia é uma frase de Arlt, a orelha traz um aviso de Haroldo Conti sobre o que nos espera, com a ressalva de que essas páginas brutais são também um ato de empatia, já que "sob esse mundo sem concessões - sem um buraco nem uma árvore onde proteger-se por um instante - alenta, solitária e pudorosa, a única piedade possível neste tempo: a que destrói o engano." Como todo grande escritor, Piglia não fez mais que denunciar as belas máscaras, corroer as fachadas que não nos deixam ver que vivemos dias hediondos.
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