A invasão


Pode a ficção dar sentido ao "crepúsculo da piedade"? Nos relatos selvagens de "A invasão", Ricardo Piglia retrata o que há de cruel no âmago das relações humanas: a fúria de quem não tolera o gozo alheio ou já não aguenta reprimir o próprio desejo ("Tarde de amor"); o desamparo da velhice e sua perpétua prisão ao passado ("O muro"); a metrópole que seduz e destroça e não pára de engendrar vítimas e carrascos ("Uma luz que sumia"); as renúncias e covardias que culminam numa perda irreparável ("Suave é a noite"). A turbulenta história argentina aparece ficcionalizada em "Mata Hari 55" e "As atas do julgamento", narrativas que giram em torno de traidores, alienados e idealistas que não resistem à prova da realidade. E no conto-título, assistimos ao surgimento de Renzi (futuro Emilio Renzi, alter ego de Piglia) como um estudante encarcerado que não consegue dormir (de calor, medo, angústia e choque) ao dar-se conta de que algo espantoso acontece no fundo da cela. Algo que o perturba e invade para além dos ouvidos cobertos e dos olhos fechados.

Se a primeira epígrafe do primeiro livro de Piglia é uma frase de Arlt, a orelha traz um aviso de Haroldo Conti sobre o que nos espera, com a ressalva de que essas páginas brutais são também um ato de empatia, já que "sob esse mundo sem concessões - sem um buraco nem uma árvore onde proteger-se por um instante - alenta, solitária e pudorosa, a única piedade possível neste tempo: a que destrói o engano." Como todo grande escritor, Piglia não fez mais que denunciar as belas máscaras, corroer as fachadas que não nos deixam ver que vivemos dias hediondos.

O Túnel


"Bastará decir que soy Juan Pablo Castel, el pintor que mató a María Iribarne". Já na primeira frase de seu romance de estreia, Sabato revela o que houve e com quem; resta-nos seguir em busca do por quê. Só que as razões deste feminicídio são obscuras e tortuosas como o túnel em que o protagonista se sente preso desde sempre. O leitor até infere as motivações do crime, mas o criminoso jamais chega a admiti-las; por um "oscuro instinto", prefere desviar da resposta ou atribuir ao destino o fato de ter esfaqueado a amante até a morte. E se narra o que fez, não é bem para se justificar: o que busca, acima de tudo, é que alguém, uma pessoa ao menos, possa entendê-lo.

Castel é um ser dividido, contraditório: pintor famoso e incompreendido, indefeso e raivoso, misantropo e sedento de contato, misógino e à espera da mulher perfeita, que interprete a chave oculta em uma de suas telas (não por acaso intitulada "Maternidad") e venha salvá-lo da solidão extrema. A paixão de Castel e María gira justamente em torno da ideia de que existem "almas semejantes" que se atraem e se reconhecem em meio às odiosas multidões de uma cidade. Numa carta, a própria María escreve que a tela se parece às recordações de "seres como vos y yo". E assim os dois viram amantes porque se crêem complementares e distintos de todos que os cercam. Dois contra o mundo: que pode haver de mais sedutor e enganoso?

Tudo o que sabemos passa pelo filtro dos ciúmes e da paranoia de Castel. Coisas que ele constata, imagina, sonha ou suspeita: María é uma Capitu à moda argentina, que mexe com os homens a ponto de levá-los ao suicídio; é casada com um cego a quem trai e com quem se deita à base de simulações; tem um passado que termina por confessar ao amante mas do qual ele só recorda frases soltas, ambíguas, que depois viram provas da acusação que antecede o veredito. Talvez os dois fossem mesmo iguais em escuridão (numa conversa, María se define como alguém que faz mal a quem dela se aproxima) e, portanto, fadados a destruirem um ao outro. Ou talvez ela fosse apenas uma mulher lutando com os próprios demônios e que teve o azar de se envolver com um bicho confinado desde a infância na cova de si mesmo. Sabato não esclarece nada e as provas que Castel levanta contra María são sempre dúbias, circunstanciais.

Confessar um passado foi o que selou a sentença de María. Entre outros passos em falso, foi o que destruiu o encanto da idealização e rebaixou-a ao nível das mulheres de carne e osso com as quais ele nunca quis nem conseguiu se envolver. Castel passou toda a sua vida num túnel e foi numa janela desse túnel que encontrou María, presa do lado de lá, prisioneira como ele. Além do vidro, finalmente uma pessoa capaz de entendê-lo, ampará-lo, ouvi-lo; na superfície muda, quase transparente, um reflexo purificado de si mesmo, livre das baixezas naturais de todo homem. Mas ela nem sempre aparecia na janela. Às vezes, María demorava, sumia, não respondia, teimava em andar pelo próprio túnel, espiar outra janela... Em várias passagens, Castel se sente um menino perdido, ameaçado pela ausência da amante. Antes de enfiar-lhe a faca no peito, ele diz: "- Tengo que matarte. Me has dejado solo." É uma tentativa insensata ("insensato", aliás, é uma palavra gravada a fogo em sua memória) de romper o vidro que o mantém incomunicável, escapar da galeria de espelhos.

"O túnel" pode ser considerado um romance policial-existencial, já que o protagonista oscila entre a angústia de saber que a vida é fugaz e sem sentido, que todos os esforços são inúteis, e a revolta contra a humanidade, as massas, as paixões e misérias que, querendo ou não, compartilha com homens e mulheres comuns. Juan Pablo Castel é uma mistura de Édipo, Otelo e o homem do subsolo, de Dostoiévski. Alguém que nunca pára de condenar a tudo e a todos (a si mesmo, inclusive), ao mesmo tempo que se sente incompreendido, segregado do "mundo sin límites de los que no viven en túneles". Um menino que anseia pelo amor absoluto (de uma mãe) e não consegue enxergar que a condição humana é, em grande medida, feita de incertezas, zonas de sombra e incompletude.

Palavras: "Plata Quemada"

Leonardo Sbaraglia em "Plata Quemada"

"Esperar. A maior parte do tempo, a gente tem de esperar. Esperar o momento do assalto, esperar que passe a febre de te procurar. Esperar para pegar a grana... O tempo é algo que te esgota. Uma batalha perdida. É como estar na prisão, você se pergunta como preencher o tempo.

Com o corpo você não pode contar... Você não pode transar, não pode chorar... Eles te vigiam, ficam em cima. Só resta a cabeça. E você pensa - bobagens - mas você pensa.

Se eu tivesse que explicar tudo o que pensei enquanto estava preso... levaria o mesmo tempo que passei na prisão. Você imagina coisas. Imagina o que perdeu. O que ficou de fora quando a sua vida foi suspensa.

Um assalto, passo a passo... uma e outra vez, como num filme. A construção de uma casa, tijolo por tijolo. Uma mulher, os detalhes do encontro... palavras, movimentos, cores. Você vive na cabeça, você se converte nisso... em uma cabeça, em um crânio.

Na prisão, virei bicha, viciado, peronista, aprendi a brigar, a jogar xadrez, a bater em quem me olhava torto, a fazer figurinhas com o papel prateado do cigarro, a transar parado, a perder-me num livro e quase não voltar. E continuei construindo casas na minha cabeça... para então dinamitá-las."

"Plata Quemada", Marcelo Piñeyro.