Martín (Mateo Chiarino) y Eugenio (Manuel Vignau), "Hawaii" |
Martín é um jovem sem rumo, sem família, sem teto. Em busca de abrigo, retorna à cidadezinha onde viveu quando criança. Não encontra mais parente algum e, sem grana para sair dali, começa a bater de porta em porta atrás de serviço e comida. Além de três caixas deixadas num depósito e algumas roupas enfiadas na mochila, ele só pode contar com a força dos próprios braços. Já Eugenio tem diante de si "um futuro promissor". Escreve para revistas e refugia-se numa bela casa de campo sempre que precisa de descanso ou silêncio. À beira da piscina, ele desenha e bebe mate, lê e toma sol enquanto as idéias para um romance ganham forma em sua mente. Enquanto, perto dali, Martín procura alguma torneira em que o deixem se refrescar do calor que não dá trégua. À primeira vista, os protagonistas de "Hawaii" (2013) pertencem a mundos distintos e irreconciliáveis. Um olhar estereotipado, do tipo que usamos todos os dias para rotular as pessoas, concluiria que esses dois não têm, não podem ter e jamais terão qualquer coisa em comum. São vidas que seguem (que costumam seguir) em direções opostas. Mas a verdade é que, apesar de tudo que os separa, Martín e Eugenio foram amigos na infância e compartilham um mundo à parte, repleto de emoções e lembranças.
Um belo dia, Martín bate ao portão da casa onde costumava brincar quando menino, a casa em que veraneava a família de Eugenio. É assim que, depois de longos anos sem contato, os dois se reencontram. A princípio, Eugenio não o reconhece (embora observe a beleza do outro com evidente interesse) mas basta Martín comentar que frequentava aquela piscina para que ele perceba de quem se trata. Combinam então que, durante as semanas em que Eugenio ficará por ali tentando escrever seu livro, Martín fará reparos na velha casa. Como é de se esperar, a reaproximação se dá de forma lenta e cautelosa. Eugenio trata Martín com cordialidade, mas há entre os dois uma distância incômoda, uma barreira feita de tempo e de convenções sociais. Há também um desejo latente, mas a intimidade que tinham quando garotos foi perdida e terá de ser reconquistada aos poucos, através de conversas cada vez mais francas, bate-papos que evocam tudo o que viram e fizeram juntos numa época de inocência e descobertas. O cenário é mais do que propício à reaproximação: a casa que ainda guarda caixas e mais caixas de objetos do passado, cercada de árvores e pássaros, acolhedora como um paraíso. A casa que, ao contrário dos irmãos, Eugenio nunca quis vender.
Se em "Plan B", Marco Berger transforma uma situação aparentemente banal num romance delicioso de se ver, "Hawaii" é o filme em que o diretor argentino aprofunda questões do primeiro longa e tece uma trama bem mais complexa, ainda que revestida em simplicidade. Por trás do que se vê na tela, ou seja, o crescente fascínio entre dois homens isolados do mundo ordinário, há outra história que se desenrola na cabeça dos personagens e do espectador. O passado, que Berger não precisa mostrar em flashbacks, permanece impregnado naquela casa. Perto do fim do filme, ouvimos ecos dos meninos rindo na piscina e vemos que os brinquedos encaixotados num quarto escuro só esperavam a chance de voltar à vida e restabelecer os laços rompidos. Ontem é um coração que pulsa sob a pele do hoje: a infância fala através das bocas, espia pelas pupilas a cada troca de olhares entre Eugenio (Manuel Vignau) e Martín (Mateo Chiarino). Mais que a atração física, quem dita o ritmo hesitante de seus corpos são as recordações compartidas, com todo o seu peso e beleza. Até o beijo, quando finalmente acontece, parece o primeiro da vida dos dois.
Impossível não notar as semelhanças entre "Plan B" e "Hawaii". Em ambos, Berger elege as imagens (fotografias, slides) e os brinquedos como objetos encarregados de dizer o que as pessoas não conseguem expressar. No primeiro filme, uma foto escondida na carteira de Pablo foi a prova que Bruno precisava para entender que o outro também o queria. No segundo, uma foto que Martín recolhe do lixo e guarda entre as páginas de um livro revela a Eugenio que sua paixão é correspondida. Pablo ganha de Bruno um pequeno visor de slides e sorri feito um garotinho enquanto os assiste. Um aparelho semelhante traz Martín de volta à casa depois de um mal-entendido, mas desta vez o espectador também vê o que os personagens vêem, que tipo de imagens se escondem ali dentro e porque uma delas é tão especial. Outro fator de comparação é Manuel Vignau, que atuou em três filmes de Berger (além dos longas já citados, está no curta "Una ultima voluntad") e faz do Eugenio, de "Hawaii", quase que um avesso do Bruno, de "Plan B". Tanto por dentro quanto por fora, são homens muito diferentes. Um ator menos talentoso talvez não entregasse interpretações tão marcadamente distintas, tendo em vista que as circunstâncias em que os personagens acabam envolvidos - enamorar-se de um amigo e ter dificuldades para lidar com o fato - são bastante similares. Também em comum nos dois filmes são esses adultos que volta e meia se pegam revivendo as aventuras da infância e que às vezes demostram uma timidez e uma vulnerabilidade próprias de adolescentes apaixonados. Com um pouco de imaginação, dá até pra concluir que os protagonistas de "Hawaii" surgiram de um dos diálogos de "Plan B", aquele em que Pablo e Bruno, deitados lado a lado, relembram - e sonham ter de volta - um tipo de amigo que só se tem aos doze anos, que dorme na sua casa e com quem você passa a madrugada inteira conversando. Eugenio e Martín foram justamente esses amigos que, no passado, tagarelavam noite adentro.
Outra presença constante nas películas do argentino são os olhos que espiam à distância, que se atrevem e se recolhem, que se permitem e se negam, vezes e vezes sem conta. Eugenio não consegue tirar os seus de cima de Martín e o medo de ser flagrado faz com que busque sucedâneos mais seguros: um corpo nu refletido no espelho, a silhueta que a porta de vidro do banheiro distorce. É como um vício, uma fonte inesgotável de prazer e culpa. Ele sabe que não pode alimentar esperanças nem quer correr o risco de tirar a máscara diante do amigo, mas seus olhos - assim como os nossos - parecem agir à revelia do dono. Já Martín tem um olhar quase inocente, em que o desejo aflora tímido, como que surpreso por vir à tona. Ao mesmo tempo em que procura partes do corpo de Eugenio, também lhe perscruta o rosto atrás de respostas, confirmações. Martín é quase transparente, não é difícil adivinhar o que se passa dentro dele, só que Eugenio faz o possível para evitar um definitivo "olhos nos olhos". Dias atrás, estava lendo os comentários deixados no Filmow acerca de "Hawaii" e este aqui, do Wevister Carvalho, me chamou a atenção: "A dinâmica do longa não poderia ser melhor, essa sacada de em determinados frames ora um ora outro buscar com os olhos de forma direta ou indireta os detalhes/trejeitos/curvas no outro foi sensacional - esse se envolver primeiramente com os olhos é mágico, é tentador, é arriscado, cada olhar chegava a arrancar mais 'pedaço' que o próprio toque feito e o desejo transpassado pelo olhar do Eugenio era mais do que nítido, era literalmente palpável enquanto que o do Martín foi crescendo aos poucos." Como bem ensinou outro filme argentino que eu amo de paixão, os olhos não são os melhores cúmplices de quem guarda um segredo.
Além da tensão erótica habilmente mantida ao longo do filme, uma outra tensão se insinua na consciência de todos - espectador e personagens -, a da diferença de classes. Eugenio se preocupa com Martín, tenta ajudá-lo, quer que se sinta à vontade naquela casa em que brincavam, como iguais, quando crianças, mas é visível o esforço que faz para não pensar na distância que agora os separa. Ambos ficam constrangidos com a situação e evitam tocar no assunto. Preferem os caminhos menos espinhosos, as revelações mais doces: num dado momento, Martín chega a confessar que usara várias roupas de Eugenio, roupas que lhe eram doadas pelo pai do amigo, inclusive uma blusa de lã vermelha que trazia gravado o nome do antigo dono. Para Martín, trata-se de uma lembrança engraçada, sem o menor laivo de ressentimento. Para Eugenio, tal descoberta só fortalece o afeto e a admiração que sempre sentiu pelo pai, falecido há poucos anos. Numa outra conversa, Martín pede que o amigo fale do romance que está escrevendo e Eugenio conta que é sobre um latifundiário cuja filha, ainda pequena, começa a fazer perguntas desconcertantes e perigosas, inocentes e óbvias, que põem em xeque os privilégios da classe dominante. A menina insiste em saber, por exemplo, por que poucas pessoas são donas de tantas terras e quando começaram a se apropriar do bem comum para depois transmiti-lo como herança aos próprios filhos. Uma solução interessante para explicitar o posicionamento político de Eugenio. E quando você pensa que as coisas vão ficar por aí, que o diretor poupará todo mundo - personagens e espectador - de uma verdade inconveniente demais pra ser dita em voz alta, eis que aparece alguém de fora e põe o dedo na ferida. Numa rápida visita, o irmão logo nota o modo como Eugenio olha para Martín, um olhar furtivo, ansioso, fascinado. Então pergunta quais são seus planos: fazer de Martín seu amante e sustentá-lo em Buenos Aires ou aceitá-lo como é, passando pela "vergonha" de esperá-lo à saída de um canteiro de obras, de um trabalho braçal. Eugenio pede que o irmão se cale, não suporta ouvir em termos tão duros coisas que certamente o vinham ferindo em silêncio.
Marco Berger imprime ao filme o ritmo da vida. A lentidão de algumas tomadas equivale às indecisões de todo ser humano, ao intervalo que precisamos para digerir certos fatos que nos marcam fundo, às voltas e mais voltas que damos quando queremos adiar uma decisão ou fugir de um sentimento. Assim como Eugenio e Martín têm tempo de pensar e repensar o próprio desejo, o espectador, enquanto os observa, pode também refletir, emocionar-se e colocar-se no lugar das personagens. É uma aprendizagem, uma experiência transformadora. Berger sempre nos dá a impressão de que consegue extrair muito de quase nada, mas a verdade é que qualquer história envolvendo gente contém em si um poço sem fundo. Cabe ao diretor saber aprofundar a trama mais simples, sondar os abismos que se escondem sob as vivências mais comuns. "Hawaii" é primoroso nesse sentido.
Um filme sobre desejo, amizade, memória e infância. Um filme de abordagem homoerótica em que a troca de olhares e o contato físico entre os personagens (quase sempre em meio a brincadeiras) é tão importante para o surgimento da paixão quanto as lembranças das "caçadas" e das pescarias, dos banhos de piscina e dos slides que alegraram os primeiros anos de suas vidas. Assim como o germe da revolução está na garotinha descrita por Eugenio, a semente do amor está nos sentimentos que ele e seu amigo partilharam lá atrás. Até o título do filme revela o poder desse passado sobre o presente e o futuro dos dois. É uma palavra que desvenda o sentido de outras, um rosebud feito de cores e de promessas que se podem realizar.
(Assistido pela primeira vez em 12/05/16)
Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=DU0qmw2Ct0o
Um ótimo texto sobre o filme (em espanhol):
http://tallerlaotra.blogspot.com.br/2013/10/hawaii-de-marco-berger-online.html