Romance negro com argentinos


Novela negra: já sabemos que haverá um crime. Que teremos um assassino e uma vítima, talvez uma resposta e uma punição. Mas o título não garante que Luisa Valenzuela seguirá as regras do gênero. Quando os protagonistas são argentinos, qualquer linha reta pode virar espiral. Quando são amantes, o fio da meada faz nó. E se são escritores em Nova York, tudo se emaranha de vez, porque a cidade, teatro puro, é uma teia de pesadelo e delírio, realidade e ficções. 

Roberta y Agustín. Medo de escrever e de não escrever, da página em branco e da página cheia de horrores que não reconhecem como próprios. Medo de ser títere de um autor maligno, de ser carne viva atirada de um helicóptero para que não perturbe mais, não nomeie seus carrascos. Medo de matar também, de ser monstro. Melhor fugir, mas o medo vai junto, escondido. Melhor parar de escrever, melhor não saber, mas sabem, sabiam, e demandam castigo. 

Mais perturbadoras são as associações entre tortura consentida e aquela outra que muitos ainda negam ou justificam. Enquanto lemos uma dor prevista, performática, outras dores gritam nas entrelinhas. "Enfie seu corpo onde você enfia suas palavras", essa é Roberta forçando os limites da ficção ou do amor. Ela se esquece (e Agustín a faz lembrar) que uma bala de chumbo não é uma bala de papel. Se no jogo erótico (e no rascunho do romance), os perigos são falsos, o sangue derramado nas prisões e na noite é de verdade. 

Sombras à parte (ou não), o livro seduz pela metalinguagem e pelas referências a Camus, Cortázar, Hesse, Artaud, Borges, Kafka... Longa jornada por teatros absurdos e seus atores fabulosos: a fauna de Nova York no final dos anos 80, gente louca e drogada, artistas, mendigos, notívagos, excêntricos. Cidade-palco onde maravilha e horror andam à espreita. Terceira vez que a visitei e pretendo voltar, já que leitoras (e escritoras) não correm risco de morte, podem se meter em qualquer beco de frases e sair ilesas. Será?

A invasão


Pode a ficção dar sentido ao "crepúsculo da piedade"? Nos relatos selvagens de "A invasão", Ricardo Piglia retrata o que há de cruel no âmago das relações humanas: a fúria de quem não tolera o gozo alheio ou já não aguenta reprimir o próprio desejo ("Tarde de amor"); o desamparo da velhice e sua perpétua prisão ao passado ("O muro"); a metrópole que seduz e destroça e não pára de engendrar vítimas e carrascos ("Uma luz que sumia"); as renúncias e covardias que culminam numa perda irreparável ("Suave é a noite"). A turbulenta história argentina aparece ficcionalizada em "Mata Hari 55" e "As atas do julgamento", narrativas que giram em torno de traidores, alienados e idealistas que não resistem à prova da realidade. E no conto-título, assistimos ao surgimento de Renzi (futuro Emilio Renzi, alter ego de Piglia) como um estudante encarcerado que não consegue dormir (de calor, medo, angústia e choque) ao dar-se conta de que algo espantoso acontece no fundo da cela. Algo que o perturba e invade para além dos ouvidos cobertos e dos olhos fechados.

Se a primeira epígrafe do primeiro livro de Piglia é uma frase de Arlt, a orelha traz um aviso de Haroldo Conti sobre o que nos espera, com a ressalva de que essas páginas brutais são também um ato de empatia, já que "sob esse mundo sem concessões - sem um buraco nem uma árvore onde proteger-se por um instante - alenta, solitária e pudorosa, a única piedade possível neste tempo: a que destrói o engano." Como todo grande escritor, Piglia não fez mais que denunciar as belas máscaras, corroer as fachadas que não nos deixam ver que vivemos dias hediondos.

O Túnel


"Bastará decir que soy Juan Pablo Castel, el pintor que mató a María Iribarne". Já na primeira frase de seu romance de estreia, Sabato revela o que houve e com quem; resta-nos seguir em busca do por quê. Só que as razões deste feminicídio são obscuras e tortuosas como o túnel em que o protagonista se sente preso desde sempre. O leitor até infere as motivações do crime, mas o criminoso jamais chega a admiti-las; por um "oscuro instinto", prefere desviar da resposta ou atribuir ao destino o fato de ter esfaqueado a amante até a morte. E se narra o que fez, não é bem para se justificar: o que busca, acima de tudo, é que alguém, uma pessoa ao menos, possa entendê-lo.

Castel é um ser dividido, contraditório: pintor famoso e incompreendido, indefeso e raivoso, misantropo e sedento de contato, misógino e à espera da mulher perfeita, que interprete a chave oculta em uma de suas telas (não por acaso intitulada "Maternidad") e venha salvá-lo da solidão extrema. A paixão de Castel e María gira justamente em torno da ideia de que existem "almas semejantes" que se atraem e se reconhecem em meio às odiosas multidões de uma cidade. Numa carta, a própria María escreve que a tela se parece às recordações de "seres como vos y yo". E assim os dois viram amantes porque se crêem complementares e distintos de todos que os cercam. Dois contra o mundo: que pode haver de mais sedutor e enganoso?

Tudo o que sabemos passa pelo filtro dos ciúmes e da paranoia de Castel. Coisas que ele constata, imagina, sonha ou suspeita: María é uma Capitu à moda argentina, que mexe com os homens a ponto de levá-los ao suicídio; é casada com um cego a quem trai e com quem se deita à base de simulações; tem um passado que termina por confessar ao amante mas do qual ele só recorda frases soltas, ambíguas, que depois viram provas da acusação que antecede o veredito. Talvez os dois fossem mesmo iguais em escuridão (numa conversa, María se define como alguém que faz mal a quem dela se aproxima) e, portanto, fadados a destruirem um ao outro. Ou talvez ela fosse apenas uma mulher lutando com os próprios demônios e que teve o azar de se envolver com um bicho confinado desde a infância na cova de si mesmo. Sabato não esclarece nada e as provas que Castel levanta contra María são sempre dúbias, circunstanciais.

Confessar um passado foi o que selou a sentença de María. Entre outros passos em falso, foi o que destruiu o encanto da idealização e rebaixou-a ao nível das mulheres de carne e osso com as quais ele nunca quis nem conseguiu se envolver. Castel passou toda a sua vida num túnel e foi numa janela desse túnel que encontrou María, presa do lado de lá, prisioneira como ele. Além do vidro, finalmente uma pessoa capaz de entendê-lo, ampará-lo, ouvi-lo; na superfície muda, quase transparente, um reflexo purificado de si mesmo, livre das baixezas naturais de todo homem. Mas ela nem sempre aparecia na janela. Às vezes, María demorava, sumia, não respondia, teimava em andar pelo próprio túnel, espiar outra janela... Em várias passagens, Castel se sente um menino perdido, ameaçado pela ausência da amante. Antes de enfiar-lhe a faca no peito, ele diz: "- Tengo que matarte. Me has dejado solo." É uma tentativa insensata ("insensato", aliás, é uma palavra gravada a fogo em sua memória) de romper o vidro que o mantém incomunicável, escapar da galeria de espelhos.

"O túnel" pode ser considerado um romance policial-existencial, já que o protagonista oscila entre a angústia de saber que a vida é fugaz e sem sentido, que todos os esforços são inúteis, e a revolta contra a humanidade, as massas, as paixões e misérias que, querendo ou não, compartilha com homens e mulheres comuns. Juan Pablo Castel é uma mistura de Édipo, Otelo e o homem do subsolo, de Dostoiévski. Alguém que nunca pára de condenar a tudo e a todos (a si mesmo, inclusive), ao mesmo tempo que se sente incompreendido, segregado do "mundo sin límites de los que no viven en túneles". Um menino que anseia pelo amor absoluto (de uma mãe) e não consegue enxergar que a condição humana é, em grande medida, feita de incertezas, zonas de sombra e incompletude.

Palavras: "Plata Quemada"

Leonardo Sbaraglia em "Plata Quemada"

"Esperar. A maior parte do tempo, a gente tem de esperar. Esperar o momento do assalto, esperar que passe a febre de te procurar. Esperar para pegar a grana... O tempo é algo que te esgota. Uma batalha perdida. É como estar na prisão, você se pergunta como preencher o tempo.

Com o corpo você não pode contar... Você não pode transar, não pode chorar... Eles te vigiam, ficam em cima. Só resta a cabeça. E você pensa - bobagens - mas você pensa.

Se eu tivesse que explicar tudo o que pensei enquanto estava preso... levaria o mesmo tempo que passei na prisão. Você imagina coisas. Imagina o que perdeu. O que ficou de fora quando a sua vida foi suspensa.

Um assalto, passo a passo... uma e outra vez, como num filme. A construção de uma casa, tijolo por tijolo. Uma mulher, os detalhes do encontro... palavras, movimentos, cores. Você vive na cabeça, você se converte nisso... em uma cabeça, em um crânio.

Na prisão, virei bicha, viciado, peronista, aprendi a brigar, a jogar xadrez, a bater em quem me olhava torto, a fazer figurinhas com o papel prateado do cigarro, a transar parado, a perder-me num livro e quase não voltar. E continuei construindo casas na minha cabeça... para então dinamitá-las."

"Plata Quemada", Marcelo Piñeyro.

Filmes argentinos: "Hawaii"

Martín (Mateo Chiarino) y Eugenio (Manuel Vignau), "Hawaii"

Martín é um jovem sem rumo, sem família, sem teto. Em busca de abrigo, retorna à cidadezinha onde viveu quando criança. Não encontra mais parente algum e, sem grana para sair dali, começa a bater de porta em porta atrás de serviço e comida. Além de três caixas deixadas num depósito e algumas roupas enfiadas na mochila, ele só pode contar com a força dos próprios braços. Já Eugenio tem diante de si "um futuro promissor". Escreve para revistas e refugia-se numa bela casa de campo sempre que precisa de descanso ou silêncio. À beira da piscina, ele desenha e bebe mate, lê e toma sol enquanto as idéias para um romance ganham forma em sua mente. Enquanto, perto dali, Martín procura alguma torneira em que o deixem se refrescar do calor que não dá trégua. À primeira vista, os protagonistas de "Hawaii" (2013) pertencem a mundos distintos e irreconciliáveis. Um olhar estereotipado, do tipo que usamos todos os dias para rotular as pessoas, concluiria que esses dois não têm, não podem ter e jamais terão qualquer coisa em comum. São vidas que seguem (que costumam seguir) em direções opostas. Mas a verdade é que, apesar de tudo que os separa, Martín e Eugenio foram amigos na infância e compartilham um mundo à parte, repleto de emoções e lembranças.

Um belo dia, Martín bate ao portão da casa onde costumava brincar quando menino, a casa em que veraneava a família de Eugenio. É assim que, depois de longos anos sem contato, os dois se reencontram. A princípio, Eugenio não o reconhece (embora observe a beleza do outro com evidente interesse) mas basta Martín comentar que frequentava aquela piscina para que ele perceba de quem se trata. Combinam então que, durante as semanas em que Eugenio ficará por ali tentando escrever seu livro, Martín fará reparos na velha casa. Como é de se esperar, a reaproximação se dá de forma lenta e cautelosa. Eugenio trata Martín com cordialidade, mas há entre os dois uma distância incômoda, uma barreira feita de tempo e de convenções sociais. Há também um desejo latente, mas a intimidade que tinham quando garotos foi perdida e terá de ser reconquistada aos poucos, através de conversas cada vez mais francas, bate-papos que evocam tudo o que viram e fizeram juntos numa época de inocência e descobertas. O cenário é mais do que propício à reaproximação: a casa que ainda guarda caixas e mais caixas de objetos do passado, cercada de árvores e pássaros, acolhedora como um paraíso. A casa que, ao contrário dos irmãos, Eugenio nunca quis vender.

Se em "Plan B", Marco Berger transforma uma situação aparentemente banal num romance delicioso de se ver, "Hawaii" é o filme em que o diretor argentino aprofunda questões do primeiro longa e tece uma trama bem mais complexa, ainda que revestida em simplicidade. Por trás do que se vê na tela, ou seja, o crescente fascínio entre dois homens isolados do mundo ordinário, há outra história que se desenrola na cabeça dos personagens e do espectador. O passado, que Berger não precisa mostrar em flashbacks, permanece impregnado naquela casa. Perto do fim do filme, ouvimos ecos dos meninos rindo na piscina e vemos que os brinquedos encaixotados num quarto escuro só esperavam a chance de voltar à vida e restabelecer os laços rompidos. Ontem é um coração que pulsa sob a pele do hoje: a infância fala através das bocas, espia pelas pupilas a cada troca de olhares entre Eugenio (Manuel Vignau) e Martín (Mateo Chiarino). Mais que a atração física, quem dita o ritmo hesitante de seus corpos são as recordações compartidas, com todo o seu peso e beleza. Até o beijo, quando finalmente acontece, parece o primeiro da vida dos dois.

Impossível não notar as semelhanças entre "Plan B" e "Hawaii". Em ambos, Berger elege as imagens (fotografias, slides) e os brinquedos como objetos encarregados de dizer o que as pessoas não conseguem expressar. No primeiro filme, uma foto escondida na carteira de Pablo foi a prova que Bruno precisava para entender que o outro também o queria. No segundo, uma foto que Martín recolhe do lixo e guarda entre as páginas de um livro revela a Eugenio que sua paixão é correspondida. Pablo ganha de Bruno um pequeno visor de slides e sorri feito um garotinho enquanto os assiste. Um aparelho semelhante traz Martín de volta à casa depois de um mal-entendido, mas desta vez o espectador também vê o que os personagens vêem, que tipo de imagens se escondem ali dentro e porque uma delas é tão especial. Outro fator de comparação é Manuel Vignau, que atuou em três filmes de Berger (além dos longas já citados, está no curta "Una ultima voluntad") e faz do Eugenio, de "Hawaii", quase que um avesso do Bruno, de "Plan B". Tanto por dentro quanto por fora, são homens muito diferentes. Um ator menos talentoso talvez não entregasse interpretações tão marcadamente distintas, tendo em vista que as circunstâncias em que os personagens acabam envolvidos - enamorar-se de um amigo e ter dificuldades para lidar com o fato - são bastante similares. Também em comum nos dois filmes são esses adultos que volta e meia se pegam revivendo as aventuras da infância e que às vezes demostram uma timidez e uma vulnerabilidade próprias de adolescentes apaixonados. Com um pouco de imaginação, dá até pra concluir que os protagonistas de "Hawaii" surgiram de um dos diálogos de "Plan B", aquele em que Pablo e Bruno, deitados lado a lado, relembram - e sonham ter de volta - um tipo de amigo que só se tem aos doze anos, que dorme na sua casa e com quem você passa a madrugada inteira conversando. Eugenio e Martín foram justamente esses amigos que, no passado, tagarelavam noite adentro.

Outra presença constante nas películas do argentino são os olhos que espiam à distância, que se atrevem e se recolhem, que se permitem e se negam, vezes e vezes sem conta. Eugenio não consegue tirar os seus de cima de Martín e o medo de ser flagrado faz com que busque sucedâneos mais seguros: um corpo nu refletido no espelho, a silhueta que a porta de vidro do banheiro distorce. É como um vício, uma fonte inesgotável de prazer e culpa. Ele sabe que não pode alimentar esperanças nem quer correr o risco de tirar a máscara diante do amigo, mas seus olhos - assim como os nossos - parecem agir à revelia do dono. Já Martín tem um olhar quase inocente, em que o desejo aflora tímido, como que surpreso por vir à tona. Ao mesmo tempo em que procura partes do corpo de Eugenio, também lhe perscruta o rosto atrás de respostas, confirmações. Martín é quase transparente, não é difícil adivinhar o que se passa dentro dele, só que Eugenio faz o possível para evitar um definitivo "olhos nos olhos". Dias atrás, estava lendo os comentários deixados no Filmow acerca de "Hawaii" e este aqui, do Wevister Carvalho, me chamou a atenção: "A dinâmica do longa não poderia ser melhor, essa sacada de em determinados frames ora um ora outro buscar com os olhos de forma direta ou indireta os detalhes/trejeitos/curvas no outro foi sensacional - esse se envolver primeiramente com os olhos é mágico, é tentador, é arriscado, cada olhar chegava a arrancar mais 'pedaço' que o próprio toque feito e o desejo transpassado pelo olhar do Eugenio era mais do que nítido, era literalmente palpável enquanto que o do Martín foi crescendo aos poucos." Como bem ensinou outro filme argentino que eu amo de paixão, os olhos não são os melhores cúmplices de quem guarda um segredo.

Além da tensão erótica habilmente mantida ao longo do filme, uma outra tensão se insinua na consciência de todos - espectador e personagens -, a da diferença de classes. Eugenio se preocupa com Martín, tenta ajudá-lo, quer que se sinta à vontade naquela casa em que brincavam, como iguais, quando crianças, mas é visível o esforço que faz para não pensar na distância que agora os separa. Ambos ficam constrangidos com a situação e evitam tocar no assunto. Preferem os caminhos menos espinhosos, as revelações mais doces: num dado momento, Martín chega a confessar que usara várias roupas de Eugenio, roupas que lhe eram doadas pelo pai do amigo, inclusive uma blusa de lã vermelha que trazia gravado o nome do antigo dono. Para Martín, trata-se de uma lembrança engraçada, sem o menor laivo de ressentimento. Para Eugenio, tal descoberta só fortalece o afeto e a admiração que sempre sentiu pelo pai, falecido há poucos anos. Numa outra conversa, Martín pede que o amigo fale do romance que está escrevendo e Eugenio conta que é sobre um latifundiário cuja filha, ainda pequena, começa a fazer perguntas desconcertantes e perigosas, inocentes e óbvias, que põem em xeque os privilégios da classe dominante. A menina insiste em saber, por exemplo, por que poucas pessoas são donas de tantas terras e quando começaram a se apropriar do bem comum para depois transmiti-lo como herança aos próprios filhos. Uma solução interessante para explicitar o posicionamento político de Eugenio. E quando você pensa que as coisas vão ficar por aí, que o diretor poupará todo mundo - personagens e espectador - de uma verdade inconveniente demais pra ser dita em voz alta, eis que aparece alguém de fora e põe o dedo na ferida. Numa rápida visita, o irmão logo nota o modo como Eugenio olha para Martín, um olhar furtivo, ansioso, fascinado. Então pergunta quais são seus planos: fazer de Martín seu amante e sustentá-lo em Buenos Aires ou aceitá-lo como é, passando pela "vergonha" de esperá-lo à saída de um canteiro de obras, de um trabalho braçal. Eugenio pede que o irmão se cale, não suporta ouvir em termos tão duros coisas que certamente o vinham ferindo em silêncio.

Marco Berger imprime ao filme o ritmo da vida. A lentidão de algumas tomadas equivale às indecisões de todo ser humano, ao intervalo que precisamos para digerir certos fatos que nos marcam fundo, às voltas e mais voltas que damos quando queremos adiar uma decisão ou fugir de um sentimento. Assim como Eugenio e Martín têm tempo de pensar e repensar o próprio desejo, o espectador, enquanto os observa, pode também refletir, emocionar-se e colocar-se no lugar das personagens. É uma aprendizagem, uma experiência transformadora. Berger sempre nos dá a impressão de que consegue extrair muito de quase nada, mas a verdade é que qualquer história envolvendo gente contém em si um poço sem fundo. Cabe ao diretor saber aprofundar a trama mais simples, sondar os abismos que se escondem sob as vivências mais comuns. "Hawaii" é primoroso nesse sentido.

Um filme sobre desejo, amizade, memória e infância. Um filme de abordagem homoerótica em que a troca de olhares e o contato físico entre os personagens (quase sempre em meio a brincadeiras) é tão importante para o surgimento da paixão quanto as lembranças das "caçadas" e das pescarias, dos banhos de piscina e dos slides que alegraram os primeiros anos de suas vidas. Assim como o germe da revolução está na garotinha descrita por Eugenio, a semente do amor está nos sentimentos que ele e seu amigo partilharam lá atrás. Até o título do filme revela o poder desse passado sobre o presente e o futuro dos dois. É uma palavra que desvenda o sentido de outras, um rosebud feito de cores e de promessas que se podem realizar.

(Assistido pela primeira vez em 12/05/16)

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=DU0qmw2Ct0o

Um ótimo texto sobre o filme (em espanhol):
http://tallerlaotra.blogspot.com.br/2013/10/hawaii-de-marco-berger-online.html

Palavras: "Plan B"

Bruno y Pablo, "Plan B"

Pablo: - Te traje un regalo.

Bruno: - Ah… Muy bueno, muy bien ahí, ¿eh? Igual ya compre uno, no sé si te acordas, por veinte pesos. Más lindo… asi que tengo dos baldes y dos palitas…

Pablo: - Igual… yo estoy ahí, por eso te lo regalo…

Bruno: - Y yo pongo todas las fichas acá…

"Plan B", Marco Berger.

Filmes argentinos: "Plan B"

Bruno y Pablo, "Plan B"

Bruno namora Laura, mas ela decide botá-lo no banco de reservas (o que significa que eles continuam se encontrando às escondidas) e passa a namorar Pablo. Inconformado com o chute na bunda, Bruno busca informações sobre o rival e fica sabendo que este costuma se relacionar também com homens (quem dá a dica, aliás, é uma amiga que fica com Pablo vez ou outra...). Já que as suas intenções de reconquistar Laura parecem fadadas ao fracasso, Bruno esboça um novo plano: aproximar-se de Pablo, seduzi-lo, fazê-lo cometer algum deslize, afastá-lo, enfim, dessa bola dividida. Tudo muito divertido, uma aventura até interessante, ainda mais porque Bruno conta com o apoio de Victor, um grande amigo que sempre o escuta e aconselha e que está a par da empreitada. Bruno então trava contato com o novo amor de sua ex, mas o que ele não sabe é que: a) Pablo é um cara muito legal; b) Pablo nunca se relacionou com homens, embora pense no assunto; c) Pablo logo tomará o lugar de Laura em seus pensamentos e desejos.

Como sugere o resumo, "Plan B" (2009), do diretor argentino Marco Berger, é um filme simples, honesto e romântico. Pra quem reclama que quase todo filme com temática LGBT termina em solidão ou tragédia, este aqui contraria as expectativas e mostra uma relação homossexual que se constrói aos poucos e é bem aceita pelo círculo de amigos dos protagonistas. Os conflitos existem mas são internos, íntimos, feitos de incertezas e do medo que ambos sentem à medida que se apaixonam um pelo outro meio sem querer. Por não serem tão famosos - pelo menos aqui no Brasil -, os atores Lucas Ferraro (Pablo) e Manuel Vignau (Bruno) transmitem uma deliciosa naturalidade em cena, parecem gente de verdade, do tipo que se pode encontrar em qualquer esquina da vida. Às vezes dá até pra esquecer que estamos vendo um filme, tamanho o despojamento das locações e do figurino (destaque para as camisas de futebol, inclusive uma bem antiga da Seleção Brasileira) e a veracidade dos diálogos. Não há excessos na interpretação, a fotografia nunca se sobressai ao que é narrado, a música é usada na hora certa. O resultado é essa sensação de que também pertencemos àquele grupo e assistimos a tudo de primeira mão, acompanhando de perto um amor que nasce das afinidades e pega de surpresa esses caras que se conhecem há pouco mas já se entendem só pelo olhar.

Como saber se um filme foi bem sucedido? Quando se trata de romance, o veredito é simples: se o espectador se pega torcendo para que os personagens caiam nos braços um do outro e vivam felizes para sempre é porque o diretor acertou a mão. Justamente o que aconteceu comigo enquanto assistia a "Plan B".

"La gente para entenderte tiene que mirar a través de tus ojos, yo te veo en 3D a vos”
 - Bruno (Manuel Vignau) a Pablo (Lucas Ferraro) em "Plan B" -


(Assistido pela primeira vez em 29/04/16)

Minha cena favorita: https://www.youtube.com/watch?v=Soe2h4CuOQ4

Uma excelente análise do filme (em espanhol):
http://tallerlaotra.blogspot.com.br/2010/06/lo-propio-del-plan-es-que-falle.html